v. 5 n. 10 (2022): Veredas - Revista Interdisciplinar de Humanidades

Vivemos tempos estranhos, dominados por incertezas políticas, torniquetes econômicos, perda de identidade. Tempos avessos, miseravelmente avessos às diversidades culturais, religiosas, ao saber científico. O historiador, atento a sinais, indica situações semelhantes, no decorrer da biografia humana. O século XX, marcado por mudanças estruturais profundas, materiais e espirituais, herdou teorias que procuravam explicar, por vieses distintos, o universo de relações, isto é, a sociedade, marcada por desigualdades extremas entre donos do poder e estratos sociais vulneráveis. No prisma revolucionário, o Manifesto do Partido Comunista, de Marx e Engels, de 1848, deu origem a obras seminais para a explicação da dialética de luta de classe – o proletariado – como o motor da História. Do ponto de vista contemporizador, a exploração irrestrita do trabalho pelo capital, responsável pela miséria popular, sensibilizou o papa Leão III, que lançou a encíclica Rerum novarum, em 1891, apontando para a responsabilidade espiritual dos ricos para eliminar a miséria popular. Nessa linha, a ganância por lucros é tratada como um pecado capital, deslocando a exploração dos trabalhadores para o campo moral e ético do socialismo cristão, campo que se fortaleceu com o Concílio Vaticano II, convocado pelo Papa João XXIII, em 1961, e concluído quatro anos depois, já sob o papado de Paulo VI. Esse concílio assinalou a responsabilidade da Igreja pela vida não apenas espiritual, mas também material, dos pobres. Em 1995, o Papa João Paulo II classificou o Concílio Vaticano II como "um momento de reflexão global da Igreja sobre si mesma e sobre as suas relações com o mundo", acrescentando que essa "reflexão global" impelia a Igreja "a uma fidelidade cada vez maior ao seu Senhor”, por meio de um impulso originado também das grandes mudanças do mundo contemporâneo, que, como “sinais dos tempos”, exigiam ser decifradas à luz da “Palavra de Deus”. De modo amplo, outras doutrinas se juntaram a esse tronco, discutindo de modo constante as relações sociais, do ponto de vista das elites ou do povo humilde, o qual, de uma forma ou outra, transformou-se em protagonista da história, ocupando lugar central no palco em que se desenrola o drama da espécie humana, agora envolvida com os demais seres e coisas do universo. Uma das maiores inovações ocorridas nesse campo do conhecimento foi a concessão do lugar de fala ao povo “miúdo”, eliminando epistemas antagônicos sobre a cultura sábia e a cultura popular. Nessa área, o cancioneiro popular brasileiro captou sentimentos de fratura, retratando angústias cotidianas da população. Assim, os tempos obscuros do regime militar são retratados em versos inumeráveis, como cantou Chico Buarque de Holanda, em Rosa dos Ventos, no ano de 1970: “[...] E na gente deu o hábito/De caminhar pelas trevas/De murmurar entre as pregas/De tirar leite das pedras/De ver o tempo correr [...]”. Mas, as trevas não poderiam durar para sempre: com entusiasmo e esperança, é conclamado o levante da invisível, porém, indômita multidão de anônimos, no verso adiante transcrito: “[...] Numa enchente amazônica/ Numa explosão atlântica/ E a multidão vendo em pânico/ E a multidão vendo atônita/ Ainda que tarde/ O seu despertar”. Munida com esse sentimento de otimismo e alegria, uma multidão de anônimos, estoicamente disciplinada, compareceu ao pleito eleitoral de 30 de outubro de 2022 e, silenciosa e pacificamente, expulsou a amargura e o ódio que teimavam em pautar o debate político da nação brasileira. A expressar esse sentimento, esta edição de Veredas apresenta textos que abrem possibilidades para se repensar caminhos pluralistas para a reconstrução do novo Brasil, escolhido democraticamente pelos votos inseridos nas urnas, em 30 de outubro de 2022. Os textos tratam dos mais diversificados e candentes temas desta quadra da história: a condição dos quilombolas, no território nacional; as agressões reiteradas praticadas por homens contra mulheres, reproduzindo o poder androcrático no espaço privado e no espaço público; o catolicismo e suas memórias, na perspectiva psicanalítica; a atualidade da justiça de transição, pelas lentes da literatura, inserta na obra “K., o relato de uma busca”, de Bernardo Kucinski; o questionamento das relações de poder, nas diversas formas de representação e de discursos que buscam definir as identidades da “População em Situação de Rua”. A esse elenco de narrativas, somam-se outras reflexões: dilemas éticos enfrentados por profissionais que atuam no contexto da violência de gênero, em Portugal; o uso da Inteligência Artificial, em uma perspectiva jurídica, sobre o desenvolvimento de patentes; as consequências das rotas comerciais dos aviões franceses na região de Natal do Rio Grande do Norte, nas décadas de 1920 e 1930; e, ainda, práticas culturais próprias da metrópole, com destaque concedido às culturas urbanas que se manifestam nos espaços públicos. Aos artigos, Veredas acrescenta dois resumos de dissertações de mestrado. O primeiro resulta de uma pesquisa qualitativa sobre a prática de um Conselho Municipal, integrante da política pública de Assistência Social, no município de Prudentópolis (PR). O segundo analisa a emergência da mulher no discurso médico, durante a Era Vargas (1930 a 1945), refletindo a respeito das influências possíveis desse discurso na construção de elementos de normalidade ou anormalidade do feminino, por meio de proposições sobre eugenia, organicismo e biodeterminismo, elementos teóricos chamados a corroborar posições ideológicas sobre a construção da saúde mental feminina.  

São Paulo, novembro, de 2022.

Rafael Lopes de Sousa,

Editor de Veredas e docente do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas – PPGICH da Universidade Santo Amaro (UNISA)

Alzira Lobo de Arruda Campos,

Docente do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas – PPGICH da Universidade Santo Amaro (UNISA)

Publicado: 2022-12-15

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