v. 4 n. 7 (2021): Veredas - Revista Interdisciplinar de Humanidades

O ano de 2020 terminou de maneira melancólica e sombria, deixando um rastro de incertezas, dúvidas e medos. O tempo que se iniciava, o tão esperado 2021, deveria, como de costume, renovar os projetos, os desejos e as esperanças da humanidade. Se o ano de 2020 foi marcado por diversos acontecimentos que inquietaram a psique humana, o descortinar de um novo ano criava a expectativa de que a “simples” virada do calendário traria de volta a “normalidade” dos encontros, afetos, olhares e abraços públicos. No cipoal de dúvidas e incertezas com o devir, os educadores foram obrigados a reorganizar suas agendas, repensar a didática e seus métodos de pesquisa e escrita, mas nada, absolutamente nada, afetou tanto a atividade laboral da docência como o distanciamento das discussões e debates que se davam na ágora acadêmica, subitamente congelada pela novidade do trabalho remoto. Jamais imaginaríamos que o distanciamento físico da biblioteca, do contato direto com os alunos em sala de aula, do sorriso de acolhimento do colega, ou a alegria de compartilhar o café na lanchonete fariam tanta falta à renovação de nossa criatividade e, por via de consequência, ao aprofundamento de nossas reflexões. Porém, as dificuldades impostas pela distância não nos afastaram de nossos afazeres; ao contrário, fizeram surgir novas demandas que precisavam ser respondidas com a urgência e a impessoalidade da “era da liquidez” (BAUMAN, 2001). Nestes tempos pandêmicos, os trabalhos e as solicitações para cumprimento de prazos e mesmo a pressão pela “produtividade” só fizeram crescer as responsabilidades acadêmicas desta tribo estranha, mas absolutamente necessária, dos cientistas sociais, empenhados em abordar interdisciplinarmente antigos e novos problemas decorrentes da interseção da marcha do conhecimento com as emergências sociais.

É nesse cenário que Veredas prossegue em seu caminho, apresentando artigos de pesquisadores que, apesar de enredados nas incertezas da atualidade e assoberbados pelas mais diversas demandas, respondem positivamente ao chamado da revista, dando a conhecer reflexões articuladas a variadas temáticas, mas unidas ao princípio comum: defesa da pluralidade cultural e combate sem tréguas ao negacionismo científico. A partir da multiplicidade temática e da interdisciplinaridade metodológica, Veredas, no primeiro número de 2021, apresenta um dossiê variado, composto por dez artigos e quatro resumos de dissertações. Os artigos refletem sobre o carnaval na cidade de São Paulo, história em quadrinhos, poesia, o encontro do romance com a narrativa histórica, vinho e globalização, educação e tecnologia, dependentes químicos, golpe militar e direitos humanos. Os quatro resumos de dissertações, por sua vez, registram contribuições com temáticas plurais, derivadas de questões sobre a “criminalização do movimento operário”, “cultura participativa e cibercultura”, “envelhecimento humano e modernidade”, além da “presença feminina na gestão escolar”. 

No artigo de abertura do presente número de VeredasAs cantoras, musas dos sambas-enredo dos carnavais paulistanos (1980-1991) –, Zélia Lopes Silva investiga, no viés feminino, o significado das homenagens prestadas às cantoras e intérpretes brasileiras da primeira década posterior aos governos militares, dos pontos de vista da identidade da mulher e do alinhamento dos enredos às exigências decorrentes da institucionalização dos festejos carnavalescos, política essa destinada a conferir um perfil de brasilidade aos circuitos oficiais.

No segundo artigo – The Sertão of Mister No: how to take seriously a comics’ character –, Paride Bollettin analisa os desenhos de quadrinhos como forma de apresentar o imaginário sobre lugares e povos diferentes, tomando, como fulcro, um desenho italiano sobre os acontecimentos que envolvem a personagem Mister No, em viagem pelo sertão brasileiro. O objetivo do texto é refletir sobre as confluências entre a ficção e a realidade, por meio da conjunção do imaginário do autor sobre o sertão brasileiro e a subjetividade específica do protagonista do desenho.

Matéria de Poesia: por um plano de pensamento contra-hegemônico, de Rodrigo Peixoto Barbara e Luciene de Oliveira Dias, discute, a partir de uma vertente contra-hegemônica, as contribuições da poética de Manoel de Barros para um pensamento analítico de “contra-fluxo”. Estruturado em três partes, o texto se inicia com uma breve biografia de Manoel de Barros, centralizada nas argumentações e nos elementos que constituem a matéria de sua poesia. A seguir, alinham-se considerações sobre o conceito de contra-hegemonia, do filósofo italiano Antônio Gramsci e do educador brasileiro, Paulo Freire. Por fim, os autores dispõem algumas reflexões sociais contra-hegemônicas, respaldados nos versos de Matéria de Poesia, um importante poema manoelino.

História e literatura: possíveis usos do paradigma indiciário e da operação historiográfica, de Cássio Michel dos Santos e Adriana Romero Lopes, toma como universo empírico a obra de Geraldine Brooks, As memórias do livro, a fim de discutir os processos de construção da narrativa histórica a partir da concepção de “verossimilhança”, presente na escrita historiográfica, e do “efeito do real”, inerente à escrita literária.  A análise realça o uso ficcional que a literatura faz de fatos históricos para criar seu enredo/trama. Nessa vertente, os autores procuram demarcar as diferenças entre a obra literária e a historiográfica, advertindo que o historiador, ao se utilizar dos mecanismos narrativos da literatura, deve evitar engodos estilísticos para conquistar o seu leitor.

Na mesma linha, Rafael Lopes de Sousa, Álvaro Cardoso Gomes e Luiz Antônio Dias estabelecem um diálogo entre a literatura, a história e as artes plásticas, em Representação e realidade: intriga, paixão e crime no romance Meu Nome é Vermelho, de Orhan Pamuk. Os autores buscam, em primeiro plano, compreender as intrigas, paixões e mistérios que servem de estrutura para o enredo da obra ficcional; num segundo, buscam estabelecer as diferenças de estilo entre os pintores ocidentais e os orientais, no que diz respeito à representação do homem, durante o Renascimento. Na perspectiva dos autores, o romance deixa entrever que, ao valorizar o individualismo, o Ocidente consolidou o modo de vida burguês, mas, ao estabelecer suas influências no Oriente, o conceito de individualismo precipitou o empobrecimento da economia e da cultura islâmicas, a partir do Século XIX.

“Para nunca esquecer”: direitos humanos e a ressignificação do espaço tempo escolar, de Tiago Dionisio da Silva, Nilcelio Sacramento de Sousa e Adenir Carvalho Rodrigues, discute a questão dos direitos humanos no espaço escolar a partir de experiências vivenciadas em uma escola estadual da Baixada Fluminense. Trata-se de iniciativa adotada pela Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro (SEEDUC/RJ) e que envolveu toda rede estadual, com destaque para a autonomia tanto da escola quando dos (as) estudantes, que participaram do processo. O texto destaca a importância das reflexões sobre a potência das oficinas pedagógicas realizadas a partir de eixos ancorados no cotidiano da escola e negociados com os(as) estudantes. 

Dependentes químicos sob a ótica da previdência: a sobriedade da inserção social frente à qualidadedevida, de GuilhermeAugustoLinzmeyer, Ana Paula Ribeiro e Neil Ferreira Novo, discute os desafios que as Políticas Públicas sobre o álcool e outras drogas representam para os  trabalhadores da área da Saúde. Da óptica de uma emergência social significativa nos tempos atuais e que se viu agravada pelos impactos da pandemia sobre a sociedade, os autores destacam anecessidade do desenvolvimento de políticas públicas que visem à reinserção social e laboral dos indivíduos e dareabilitaçãodestes aoconvíviocoletivo, como cidadãos autônomos e responsáveis. A análise deixa entrever que o fator previdenciário ou salarial,obtido pelo labor, mostra-se um elemento protetor quando relacionado aosmelhores índices de capacidade funcional de saúde da população,masnão provoca mudanças significativas na qualidade de vida dos droga dependentes.

Patrícia Margarida Farias Coelho e José Armando Valente em O uso de games digitais como ferramenta pedagógica aplicada ao ensino de língua portuguesa e suas literaturas analisam os games digitais como instrumento pedagógico aplicado ao ensino de língua e literatura brasileira, em uma escola estadual da cidade de São Paulo. A análise é ancorada empiricamente na plataforma FazGame, que permite a criação de jogos educacionais on-line. Os autores entendem que um games e caracteriza como um ambiente que simula situações ou como um texto sincrético, no qual distintas linguagens (verbais, visuais, sonoras e sincréticas) interagem em igualdade e se complementam mutuamente, abrindo possibilidades para que o professor de língua e literatura possa obter resultados satisfatórios no processo de ensino e aprendizado, ao aplicar games em sua prática pedagógica.

Vinho e imaginários em contexto de globalização avançada, de Carla Pires Vieira da Rocha e Eunice Sueli Nodari, investiga o vinho e os imaginários sociais que o cercam, no contexto da globalização avançada da atualidade. A principal fonte de suas investigações são as capas da revista Vinho Magazine. Assim, o quadro teórico e metodológico aplica-se às imagens e dizeres dessas capas, procurando discernir como os imaginários globais vêm sendo constituídos e disseminados a partir das mídias de comunicação. Prosseguindo em suas reflexões, os autores buscam entender como os imaginários, registrados no continente empírico por eles selecionado, podem trazer revelações tanto no que diz respeito ao vinho em contexto de globalização avançada, quanto sobre a natureza da própria globalização.

O sentido ideológico de Cultura Corporal na perspectiva crítico-superadora: análises das práticas docentes é um texto que traz as reflexões de Marlon Messias Santana Cruz, Jonatan dos Santos Silva e Felipe Eduardo Ferreira Marta sobre as formas de aplicação da análise de discurso à tendência pedagógica crítico-superadora, por meio de uma revisão sistemática em textos publicados no Caderno de Formação da Revista Brasileira de Ciências do Esporte. Os autores procuram, nessa análise, identificar os sentidos atribuídos à Cultura Corporal nos textos analisados, concluindo que a Educação Física apresenta diferentes concepções de seu objeto de estudo, uma vez que a variedade de concepções encontradas na literatura investigada resulta das bases epistemológicas que fundamentam as ações educativas.

A partir do pressuposto de que os trabalhos acadêmicos finais devem ser objetos de ampla discussão, que depende de um esforço editorial responsável e engajado aos interesses acadêmicos mais amplos, são apresentados ao público leitor quatro resumos de dissertações sobre diferentes temáticas, abaixo esquematizados.

A Criminalização do Movimento operário na Primeira República: a repressão à Greve Geral de 1917, de Gabriel Marcello Jordão Cirera, analisa interdisciplinarmente o primeiro movimento que se identifica como “greve geral” do operariado brasileiro. O autor perscruta a influência dessa greve em outras partes do território nacional, procurando entender os aspectos legais e jurídicos da repressão ao movimento grevista, na perspectiva do Código Penal de 1890 e da Lei de Expulsão de Estrangeiros de 1907. Com uma abordagem pluralista de vários campos do conhecimento – História, Sociologia, Direito – o artigo reflete sobre o papel exercido pelos poderes executivo, legislativo e judiciário na repressão à Greve de 1917.

Cultura participativa e cibercultura: o You Tube como estratégia pedagógica de Talita Destro Rost, investiga a interatividade de plataforma digitais quanto ao compartilhamento de conhecimento educacional, procurando compreender as estratégias pedagógicas de ensino do canal Matemática Rio do You Tube Edu. A pesquisa apoia-se em uma perspectiva teórica da cibercultura, como vetor para compreender as relações que se estabelecem entre a plataforma do You Tube e estratégias pedagógicas específicas. A autora destaca que as pessoas têm utilizado abundantemente dos vídeos do canal como meio de aprendizagem, quanto aos números de visualizações, porém há poucos registros de interatividade, quando se comparam os vídeos com os percentuais das categorias de “curtidas”, “não curtidas” e “comentários”.

Envelhecimento humano e modernidade: contribuições do conhecimento acadêmico, de Oriana Corrêa Martins, apresenta uma visão interdisciplinar sobre o conhecimento trazido por teses e dissertações que cuidam do envelhecimento, interligando-o com as conquistas do saber da Biologia, da Saúde, da Psicologia e da Antropologia. A autora busca entender o envelhecimento no bojo das iniciativas de políticas públicas de cidadania e emancipação. A pesquisa dirige-se para a crítica do “estado da arte” da produção acadêmica sobre o tema, tendo, como referência principal, um conjunto de termos: envelhecimento, políticas públicas do idoso, qualidade de vida e corpo. Os resultados evidenciam que a concepção de vida se fundamenta no tema prioritário da saúde relativa ao bem-estar e à qualidade de vida. Os dados divulgam particularidades culturais, que expressam as projeções sociais sobre um público, designado como “terceira idade”.

Presença feminina na gestão escolar: o pioneirismo de miss Marcia Browne na rede pública de ensino de São Paulo (1890-1896), de Michel Alves da Cruz, tem como objetivo entender a influência feminina na gestão escolar, com o pressuposto aparentemente paradoxal de que, em uma sociedade machista como a brasileira, as mulheres são maioria absoluta nos cargos de gestão escolar. O modelo analítico apoia-se fortemente em documentos, a fim de compreender os processos históricos do predomínio feminino, investigando o papel da mulher na sociedade patriarcal em relação às particularidades inerentes à gestão educacional. As evidências concernentes aos enfrentamentos de gênero no âmbito educacional valem-se dos registros históricos relativos à educadora Miss Marcia Browne.

A Editoria da Veredas deseja que os artigos e resumos desta edição sirvam para fomentar o debate sobre a interdisciplinaridade, vindo a contribuir para a formação de um pensamento crítico capaz de ampliar a compreensão sobre os desafios do presente e as soluções possíveis para atenuar a imensa miséria humana, nestes tempos malsãos em que vivemos.

Uma boa leitura e boa sorte a todos!

Rafael Lopes de Sousa

São Paulo, junho de 2021.

Publicado: 2021-06-24

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